quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Apelo

Quem é você?
Não pergunto do que dizem as suas aparências, dos seus falsos títulos e prosopopéias viciosas, dos ornatos para encobrir a mortalha fétida que recobre a tua alma ou das opiniões subornadas que os demais te fazem acreditar para que assim continue a dar-lhes sustento.
Não quero aquele que estudou e ficou sabendo, superando o que se encontrava sem oportunidade e o amassou com sua sombra. Não quero o arrogante, vencedor que se interessou adiante dos parcos e assim teve o valor redobrado sem nunca prestar homenagem a estes últimos que o sustentaram nessa fantasia convencional chamada humanidade. Não quero as opiniões das associações visionárias que sugam o sangue da tua tolice para coexistirem eternamente como vampiros da tua limitação. Não quero as impressões rotuladas de amor que matam e sufocam por puro interesse. Não quero a figura ambulante do azar que se rotula assim para impingir piedade aos demais, muito menos o mentiroso que pensa enganar aos outros, mas jamais enganará a si mesmo, nem a língua morta que viciou na palavra Deus para se sentir amparada em sua boçalidade!
Não quero uma obra do mundo das aparências e convenções, não é isso que nos interessa.
Dê-me o melhor, ou seja, pelo menos uma vez deixe de ser o que lhe imputaram, seja aquela folha de papel em branco inicial imaculada antes de ser marcada e remarcada com as inscrições das bestialidades que os outros te transformaram. Seres que já haviam morrido, mas te deixaram marcado com teorias mortas advindas do sepulcro das suas almas.
Seja aquele que poderia andar nu sem se envergonhar. O Adão puro e sem rumo nas areias do deserto da maldade sem jamais ter ciência de seu falo para ser homem. Seja a criança que defeca e urina sem se envergonhar da sua natureza.
Você já percebeu quem é que estamos procurando?
Aqui ninguém é pior, ou melhor, mais branco ou mais negro; mais inteligente ou mais burro; feio ou bonito; homem ou mulher; pobre ou rico; arrogante ou simples, normal ou deficiente, aqui somos iguais, por mais que o manto negro que encobriu nossa face oculte.
Nossa igualdade é plena, apenas nossos olhos é que buscam as diferenças. Mostraremos o porquê em breve, basta que vivas o espírito que o contém.


Esperança

Você não percebeu que, de alguma forma, nós passamos a vida esperando que alguma coisa aconteça? Talvez não saibamos dizer o que de fato esperamos, mas que esperamos, esperamos. Por mais que se faça, de alguma forma um sentimento de inacabado parece suscitar uma esperança milagrosa.
Uma pessoa, uma circunstância, um estado ou fato, provavelmente é a causa da nossa aflição inexplicável. Mas seria isso?
A condição repetitiva de todas as coisas nos enfastia.
Repare que nossa existência é uma sucessão de estados de satisfação e espera da realização de algo que vai nos satisfazer. Fazemos as coisas para nos sentirmos satisfeitos e plenos, realizados e felizes, mas será que conseguimos?
De alguma forma a monotonia invade nossas vidas e acabamos num ciclo inexorável. Comemos para ter força e trabalhar; trabalhamos para poder obter meios de sustento para comer. Estudamos para ter uma profissão e nos realizarmos e muitas vezes nos cansamos dessas atividades e desejamos ficar de papo para o ar. Quando acabamos por ter acesso a uma rede sob uma árvore com sua sombra fresca, preferimos à desordem e a muvuca de uma aglomeração em meio a suor e ouriço. Quando extenuados buscamos a calma do leito, do lar. Depois de recompostos a calma nos enjoa e sentimos saudades de voltar ao labor.
Fica patente a ojeriza pela monotonia, uma qualidade inerente a nossa constituição. O termo felicidade parece ser derivado diretamente de fuga da monotonia. O inesperado que traz prazer, dá alegria e, portanto nos arremete a breves momentos de felicidade. Assim entendemos esses estados em função dos contrastes entre os pólos opostos de todas as coisas e suas naturezas. A monotonia tem conotação com o desequilíbrio, pois presume a vivência de uma única face de forma constante, é como estar sempre no estado de “cara” sem a chance de vivenciar a “coroa”. Estar equilibrado é participar das duas formas, ter a chance de alternar todos os estados possíveis para ter emoção no câmbio de suas alternâncias.
A emoção é a presunção do sentimento. Gostar é presumir um estado constante de prazer, é sonhar-se numa alcova entre carícias e gostosuras sem a intromissão de ninguém. A emoção dá colorido à monotonia e é um artifício fundamental, pois sempre funciona, depende muito da imaginação e pouco da ação de eventos reais, aleatórios e indesejáveis. Mesmo a tristeza, que não é prazer, é a presunção de um fato dolorido. A empatia que temos pelos demais nos conduz a ficar tristes se estes sofrem. Quantas vezes sofremos a toa e depois descobrimos que tudo não passou de uma presunção errada?
Alguns até chegam ao cúmulo de ficarem viciados nesse hábito. Sem ter muitos motivos externos para terem alegria, acabam sempre buscando alguma ameaça hipotética e iminente de forma compulsiva para depois da constatação da sua não ocorrência, se sentirem felizes. Conforme colocação acertada feita pelo doutor Lair Ribeiro, alguns sentem prazer em fugir da dor, enquanto outros buscam a satisfação como objetivo final.
É necessário separar as 3 coisas. Satisfação é a reação de plenitude oriunda de um ato físico, emocional ou mental; alegria é um estado psíquico passageiro induzido por ocorrência de satisfação; felicidade é a presunção de um estado hipotético de estabilidade benigna sem alternância, no entanto, sem monotonia, coisa que não existe.
Voltando à tônica, talvez esperemos algo que nos tire desse ciclo repetitivo e previsível. Nossa infelicidade, basicamente formada pela impotência de dirigir a ocorrência de todas as coisas da forma que nos interessa, é apenas presumida. O gosto de viver está baseado justamente na esperança. Se tivéssemos certeza de qualquer coisa , qual graça teria a vida?
A proposta do Sangsara e do Nirvana , conceitos budistas, é contestável. A contraposição da existência em potencial, sem manifestação, numa percepção anômala é apenas uma suposição em contraste com nossa condição sangsárica. O nosso estado mental de relação com o Cosmo é verdadeiro dentro da esfera de percepção e conhecimento, uma suposição como o Sangsara só é inteligível como um sono sem sonhos. A vida normativa é a realidade perceptiva permeada de sonhos e elucubrações desenhadas pela natureza, a hipotética existência sangsárica é um estado presumido de ser sem conexão com a matéria, apenas uma luz que se dilui em infinitas repetições entre as faces de dois espelhos dispostos frente a frente sem conter nada entre eles.
A esperança é crente! Quantas vezes somos crentes? Todos o somos de forma irremediável. Imaginem o estresse da não crença.
Os reis e poderosos tinham escravos para experimentarem a comida e assegurar a ausência de veneno. Se assim procedermos com relação a tudo e a todos, morreríamos de ataque cardíaco de tanta tensão. A síndrome do pânico é uma variante dessa situação. O que nos garante que o pão da manhã não está contaminado com veneno, que o motorista do coletivo não o jogará contra o para choque de uma carreta em sentido contrário, que o médico não nos matará por puro sadismo na mesa de operação?
Confiamos numa estrutura que funciona antes de nascermos e construída por homens que já se foram. A prática de suas idéias é mais um vício e acomodação que exercício de avaliação e ponderação. Essa comodidade que a crença nos traz, é apenas um comportamento social que nos convém.
Nossas convenções são baseadas em acordos tácitos e implícitos repousados numa coisa chamada ética. Transgredir a ética é causar transtorno nas mais simples coisas e consumir o equilíbrio entre a volúpia corpórea e a consciência social. A abolição da ética só traz o caos! Nossa esperança sabe que temos um tempo para realizar nossos sonhos, mas não tem a idéia exata da sua dimensão.
A ética cria a ciência de viver em grupo. Deitamos a cabeça por entre nossos iguais sem medo de tê-la decapitada. Cremos através dessa ética que as coisas são de determinada forma e dela podemos esperar um condicionamento das pessoas.
Por outro lado, o termo ciência é preterido em relação à crença. O mundo se acostumou com a crença e não tem muita aptidão para buscar a ciência. Poucos homens arriscam-se em suas peias, de fato essa minoria parece ser arrogante em relação à suposta humildade daquele que simplesmente crê. Ser crente é muito atraente, pois não exige esforço, por outro lado perseverar na autenticidade de todos os eventos e fenômenos para culminar com o conhecimento é estafante e consome muito tempo e energia.
Se Cristo habitasse hoje por entre nossas vidas, vívido e impávido, não haveria crentes, apenas cientes! Todos estariam cientes da sua existência, afastados, portanto, da necessidade de crer nessa premissa. Mas, isso seria desejado?
Repare que não queremos nos deparar com Cristo, apenas queremos crer em sua existência. Qual dentre nós teria a coragem de olhá-lo no fundo dos olhos?
A razão que se oculta por detrás da nossa atitude é simples:
Todos os mitos são aceitos por estarem sem a chance de serem comprovados (felizmente) e assim o homem mantém as verdades lindas e belas neles contidas, simplesmente vívidas na esperança, abstendo-se da monotonia da santidade insossa que causa arrepio para sua existência animal. A vida monástica sem exageros e dedicada a uma incerteza que se norteia por uma fé filosófica é por deveras insípida. A própria condição política do antropóide mentiroso e megalomaníaco que conquista as estrelas, mas não consegue resgatar a confiança da esposa ou servir de exemplo de honestidade para um trabalho escolar do filho, o deixa a mercê das suas querências. A presença de um personagem que fizesse brotar a santidade no homem deve ser extremamente afastada no tempo e no espaço, não queremos correr o risco de abandonar o nosso mundo vil em detrimento de uma auréola sobre nossas cabeças. Sobre elas preferimos os chifres, a quintessência hormonal do almíscar axilar desnudado de uma fêmea em pleno apelo para o coito, sentir a vida fluindo pelos poros, sagrando-se pelo prazer. Para que a santidade efetiva de uma abnegação injusta que não dá a condição de expansão e usufruto das imundícies da carne? Aceitar a igualdade com os subordinados e respeitá-los sem impor-lhes os espinhos da nossa arrogância, viver sem dominarmos algo, ou pelo menos termos um grau maior de hierarquia?
Ora bolas, estamos aqui para viver.
A fragrância nada elegíaca da personagem de Carmem na famigerada ópera de Georges Bizet abduz o caráter torpe da nossa contraparte animal. Não é a toa que ela nos cativa a mais de século. Dom José, aquele que num momento se atira sobre as delícias do corpo da rebelde e insaciável cigana, se rende a sua beleza e escravizado, sem perceber , tenta o monopólio daquilo que jamais será seu.
Não seria a vida a mais ferrenha luta para jamais deixar de ser escravo de tudo aquilo que gostamos? A morte se justifica na busca do prazer intenso, ainda que sabendo sem chances de jamais prendê-lo; aceitamos o eufemismo de “dar a volta por cima” e quebrar a cara novamente, mas jamais abandonar o círculo de morte e prazer que nos instiga.
“O presente de Deus”, assim interpretamos o descuido ou a desgraça alheia que atacca subito, dando-nos oportunidades que aproveitamos com nossas maldades. Em meio a uma oportunidade escandalosa, geralmente vemos a ansiedade em tê-la por completo em mãos como se o destino assim o fizesse, sem jamais ponderar o lado em que poderíamos estar da questão.
Gengis Khan e suas hordas foram o fruto da vida animal do homem totalmente afastada da ética. Sem acordos ou limites para a realização da suas expansões, simplesmente fazia o possível em toda a extensão, sem restrições! O desejo sempre adiante da ética, comportamento edificado através da força do grupo que esquarteja as presas da diferença étnica, no avanço animal estraçalharam inocentes apenas para demonstrar que tinham força. Sua crença era a de que estava predestinado a conquistar o mundo, porém mal sabia ele que os maiores conquistadores são apenas aqueles que não possuem ética alguma.
Os clérigos de todas as épocas, convivendo com a benignidade e poder nato de Deus, sempre estiveram à vontade para esquecerem-se da ética e partirem para perdição total. A proximidade de Deus lhes faculta a mesma condição em relação ao pecado, coisa que se materializa como sua posse e uso indiscriminado. Se eu falo com Deus, pois sou licenciado, tenho acesso ao seu antídoto; perdão é para ser usado, pois mesmo os filhos de Deus pecam.
Ora, com o poder e a religião somos donos do mundo, assim vemos em suas peias a chance de obter esperança! Não desejamos esperar seja lá o que for, longe da segurança de suas fileiras. Estar afastado dessas duas instituições é coisa para quem tem uma austeridade acima da média.
A Ordem dos Franciscanos, legítima em sua abordagem com relação a essa questão, deixou o núcleo do poder e se conteve na fé, deste apartada. O silêncio é a maior obra que invade a alma; não são pronunciadas justificativas para as ações, elas são geradas para o meio externo e desse não sorvem nada, apenas acrescentam. A justificativa pela fé de ações que redundam em benefício próprio não podem ser tidas como atos além de mundanos. Aproveitar-se do poder e declarar-se dele participante é a degradação completa da ética. Não há justiça em nada que parta ou vá de encontro à força! A imposição não solidária de regras que segregam e agridem a individualidade, apenas obrigam a busca da fé, da esperança e do poder. A humanidade não encontra uma alternativa porque é orgulhosa.
Os primeiros humanos socializados pelo poder e pela fé, antes da matança por sobre o inimigo evocavam o nome de Deus, da mesma forma que os seus rivais além front.
A esperança de vencer nada mais era do que a força de se agravarem as diferenças de etnia, cultura e crença. Porque Deus deveria matar os ímpios ao invés de iluminar-lhes as consciências? Mas quem seriam os predestinados?
Uma piada encerra essa questão humana:
Dois amigos em um restaurante pedem dois filés, os quais chegam até à mesa com uma ligeira diferença de tamanho. Por educação, o primeiro a manifestar-se deixa cargo do outro ao ato de escolher o que lhe convém. Esse, sem titubear, avança sobre o maior dos filés, quando o outro retruca:
─ Mas pegaste o maior, isso é falta de educação, reza a cartilha de boas maneiras que devemos deixar o maior para o próximo!
Então o outro indaga:
Se fosses tu no meu lugar, o que farias?
E ele responde em alto e bom tom:
─ Ora pois, deixaria o maior para ti e pegaria o menor!
Então o outro prossegue;
─Por que reclamas se de qualquer forma eu acabaria com o maior?
As adversidades da vida já são excessivas, lutar contra a mentira humana e ser idealista é apenas uma hipótese que pode ser alimentada na igreja ou no cinema. Além disso, sabemos ser incapazes da santidade, preferimos fornicar, delatar, corromper, escarnecer, embriagar, mentir e abastar-se, coisas comuns que não exigem muitos neurônios e nem muito esforço ou grau de risco. Já estamos acostumados com essas mazelas e serpenteamos por entre suas miríades de pernas sem tropeçar.
A mentira é a mais antiga das nossas comensais antropóides. Ela deu a chance de muitos ineptos atingirem o poder e disseminar seus genes, destruindo a ciência dos poucos que tiveram coragem para encarar a vida como verdade. Ela plantou a crença ilusória em figuras decadentes forjadas em línguas pérfidas que entre ouro e ostentação trouxeram guerras e mortandade.
Mas não seria esse o objetivo aspirado pela nossa raça de forma inconsciente? Crer em mentiras é conveniente, ter a chance de ser sujo sem ser reprimido parece encantar muita gente.
Todos aqueles leais à vida como um fato aleatório pereceram sob as asas negras da mentira. Os que manipularam os fatos para obter vantagem por meio da mentira, logicamente ninguém os assim faz para ficar em desvantagem, tiveram a ilusão de alcançar o ápice. Não tiveram, no entanto sabedoria par aceitar seu declínio e acabaram loucos. Suas vidas, sepulcros animados, trouxeram a morte que tingiu suas almas pelo vermelho.
Porém, algo de muito especial deve habitar na mentira, nossa raça não a declina!
Sendo o que pensa ou pensando que é o que não é, cada um de nós vai lentamente descobrindo a sua predestinação. Alguns servirão de apoio para os pés de alguém, enquanto outros pisarão as faces de outros e muito poucos verão que em qualquer desses casos somos apenas esterco.
A hora final não pode ser apagada e nela vamos realmente descobrir se fomos algo útil ou inútil.